A praticidade da comunhão






       Vivemos uma época de muita liberdade quando o assunto diz respeito ao acesso às informações, mas o outro extremo também tem procedência. Por uma dessas ironias do destino, o que chamamos de democratização da informação tem sido o nosso tendão de Aquiles. Pois nunca as pessoas se fecharam tanto dentro de si como se tem visto agora. O pensamento é até bastante simplista, o que tenho, isso me basta. O acesso às tecnologias da informação e suas consequentes habilidades de manipulação se tornaram ferramentas indispensáveis para a sobrevivência do homem dito pós moderno. Toda essa loucura desencadeou em escalas nunca vistas o aparecimento de patologias mentais que até algum tempo atrás eram matérias de debate na abordagem de estéticas literárias, ou seja, era assunto de intelectuais. A Depressão é o exemplo mais emblemático desse novo tempo. Ela, há muito tempo, adquiriu o status de epidemia. Podemos falar dela hoje como uma pandemia, uma vez que segundo informes científicos da OMS, é a segunda causa de mortes no mundo.  


      Atualmente aquela simplicidade que sempre foi a característica da vida perdeu espaço neste universo de convivências saudáveis entre as pessoas. Pequenos gestos como desejar um bom  dia para o vizinho, ajudar a carregar a bolsa de compras da senhora idosa ou gestante, pedir a benção a pai e mãe, ou até mesmo contar uma estorinha para o filho antes de dormir são raridades entre as pessoas e principalmente no convívio familiar. Quando o assunto é religião então, aí o caldo entorna de vez. Estamos muito presos aos nossos dogmatismos e fanatismos. Ao que parece o mundo cristão inteiro acabou se tornando uma igreja como a de Corinto. Nesta igreja, o apóstolo Paulo chega a ponto de qualificar aqueles crentes como imaturos. Eles são partidários de determinadas figuras da igreja, inclusive do próprio apóstolo. Quando se reúnem para celebrar a ceia(EUCHARSITIA), são tudo, menos, e na acepção do significado etimológico da palavra companheiro¹, companheiros uns dos outros.


      Recentemente estava assistindo um documentário em vídeo que faz parte de ações produzidas pela comissão da verdade com fins educativos de conscientização e de formação da cidadania. Onde aqueles mais jovens que hoje acreditam em determinadas falas que negam a existência de um período na história do Brasil marcado por um sistema de governo ditatorial. E quase nunca se falam de jovens, membros de igrejas evangélicas, que também foram presos e torturados por estes governos do passado. Em um determinado momento, uma dessas vítimas ao relatar a forma como estava sendo interrogado pela autoridade policial. Conta que o agente indaga se ele era comunista? Ele nega veementemente que seja comunista. Então seu interrogador lhe pergunta: "Em quem você acha que devo acreditar, em você que nega ser comunista ou no seu pastor que te denunciou?" É evidente que neste período, ou, qualquer outro período da história, onde impera uma tal ordem, muito peculiar, diga-se de passagem, dos governos de exceção. Um período marcado pelo uso excessivo da força e onde as liberdades individuais são muito restritas, ocorre também esta característica tipicamente inquisitorial. Parece que as pessoas têm prazer em denunciar as outras, e sequer lhes outorgam o benefício da dúvida.


      Como disse anteriormente, vivemos dias difíceis onde princípios antes tidos como balizadores da vida e da sociedade, de um modo geral são levados a ruína. Desmoronam-se como num castelo de cartas e num efeito dominó. Não tenho a intenção de, ao me comunicar através deste texto, revelar um romantismo barato e piegas. Quero sim, e sem muito esforço, buscar como um garimpeiro que maneja a sua bateia objetivando achar aquela pepita que ele tanto almeja. Uso a metáfora do garimpeiro por achar que está mais próxima de nós do que o arqueólogo. Já que a vida, de uma maneira geral, não necessita de um profissional dessa envergadura para se valer e mostrar as riquezas que se nos apresentam a cada dia sem que dela façamos caso algum. Quando o assunto é Bíblia então, mesmo que exista aquela possibilidade de se especializar de tal forma em seus conhecimentos e toda a tradição que se construiu ao longo desses 200 nos, pra ser mais específico. Prefiro também deixar de lado essa tradição exegética, arquelógica e textual, para me ocupar daqueles exemplos tão simples que o mestre de todos os mestres nos legou e que estão relatados nestes registros escriturísticos e acessíveis a quase todos e de forma bem democrática.


      Por conta disso, é que resolvi me ocupar do  assunto comunhão e de como ele deve ser tratado com extrema praticidade. E seguindo na linha do que nos ensinou o nosso mestre. Muito mais do que falar, o que para Jesus significava  a comunhão, era a vivência e a expressão do convívio que se revelava na aceitação do outro. Era um convívio sem restrições a ninguém. A ele acorriam de todos os cantos da Palestina e de fora da Palestina. Doentes, endemoniados, religiosos, escribas, fariseus, publicanos, pecadores de um modo geral. Era principalmente um agradável e saudável assentar-se a mesa para saborear uma iguaria(Pão) e tomar uma bebida(Vinho). É comportamento típico de algumas pessoas nos finais de expedientes de trabalho e nas sextas feiras, assentarem-se em uma mesa de bar, tomar um chopp, comer o famoso tira gosto. Mas em Jesus a restrição ao tipo de pessoa que devia se assentar com ele a mesa fora abolida. A mesa de Jesus era bastante democrática e para onde ele se deslocava essas pessoas o seguiam: "Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores," (Lc. 7:34). Seguiam Jesus tanto os que se assentavam com ele a mesa quanto os seus críticos, geralmente religiosos, ou espias enviados por estes. Agora pouco estava falando do que foi o período de ditadura no Brasil e de como as pessoas, muitas vezes eram presas e torturadas, sem saberem quem as denunciou. O ambiente religioso e tipicamente eclesiástico é muito propício a este tipo de comportamento dúbio e inescrupuloso.


      Também fizemos menção da EUCHARISTIA e infelizmente a transformamos em um símbolo religioso. Quando isto aconteceu, nos esquecemos de como este símbolo religioso surge na praticidade do dia a dia do mestre. Nas comunhões de mesa de Jesus, muito presentes nos registros do NT. São relatados os seus deslocamentos de um lado pra outro. Pois a cada lugar que chega, cansado das viagens, ele precisa de uma hospedagem para repousar e se alimentar. Muitas vezes quem o hospeda não é aquele que, segundo a moral religiosa e que também o segue, é o mais digno(Mc. 2:15-17; Lc. 19:2-10). Quando alguém que goza de boa reputação no meio social e religioso lhe oferece uma hospedagem e uma mesa farta, o mestre é capaz de apontar alguns aspectos que deixam a desejar naquele local de comunhão(Lc. 7:44-46). As parábolas de Jesus falam de banquetes e mesmo quando faz referência a ausência de alguém, ou porque se negaram comparecer ao banquete oferecido(Lc. 14:16-20); ou foram mesmo alijados de se fazerem presentes em relatos mais específicos a cerca do juízo final. Neste caso, em especial, aponto para uma situação bastante emblemática nas palavras do mestre, ao referenciar a questão da herança de Israel e o seu lugar no Reino dos Céus. Já que muitos viriam do oriente e do ocidente, e assentar-se iam a mesa com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos Céus(Mt. 8:11).


      O assunto é a comunhão e a forma como a vivenciamos em nosso cotidiano. É fundamental que tenhamos sempre como exemplo maior de vida em comunhão o que nosso Senhor e mestre Jesus Cristo nos ensinou. E se ele ensinou, é imprescindível que para vivermos uma vida de comunhão sigamos os seus exemplos. E se temos que seguir seus exemplos, isto demanda uma vida de discipulado. Não existe a mínima possibilidade de sermos discípulos de Jesus e não acatarmos os seus ensinamentos como verdades para nossas vidas. John Stot em seu último livro: "O discípulo Radical", destaca o fato de que para sermos discípulos de Jesus precisamos andar debaixo de sua disciplina². A origem da palavra discípulo é latina³. Mais uma vez me reporto às palavras do apóstolo Paulo quando chamava a igreja de corinto de imatura. Eles se consumiam em partidarismos dentro da igreja ao se dizerem seguidores de Pedro, Apolo, ou do próprio Paulo. Ao mesmo tempo que ignoravam o único fundamento da igreja. Fundamento este que foi capaz de constituir o ministério de Paulo e a palavra que pregava, o próprio Cristo. Também não se pode encarar a falta de maturidade na igreja de corinto e apontada por Paulo como uma situação menos relevante no contexto da igreja. Ela tinha consequências sociais e religiosas danosas. E estas consequências materializavam-se principalmente no momento mais precioso e de celebração da igreja, na a ceia do Senhor ou eucharistia(ICor. 11:20-22).


      A coisa mais difícil e que tem se notabilizado como um dos grandes desafios na igreja do Senhor, é a nossa incapacidade de convivência, harmonia e de amor uns para com os outros. Lá no passado, nos tempos do AT, já há uma exaltação e exortação para que esse convívio fosse sim uma realidade. O Salmo 133:1, fala da solene singularidade e de como é especial a convivência pacífica do povo de Deus. A tal ponto de se tornar motivo mais do que justo para uma celebração quando os irmãos vivem em união. É bom e suave este momento de união entre o povo de Deus. Ele exala um clima como se fosse uma unção sacerdotal. Para tanto, tem que haver justiça. Sem justiça não existe harmonia entre os povos. Sem respeito aos direitos de cada pessoa humana e sua dignidade é impossível manter a paz. E o Deus todo poderoso não se agrada da opressão imposta às pessoas em quase todas as partes do mundo. Quem se torna adepto e defensor da opressão que se impõe aos mais necessitados não pode ser discípulo do mestre. E não entendeu jamais a praticidade efetiva com que o Senhor Jesus demonstra como devemos amar ao nosso próximo. Talvez uma inspiração como esta letra do Padre Zezinho possa nos ajudar na recuperação de uma vida cristã verdadeira e espelhada nos exemplos práticos de vida e discipulado que o Senhor Jesus nos deixou:


Por um pedaço de pão e por um pouco de vinho

Eu já vi mais de um irmão se desviar do caminho

Por um pedaço de pão e por um pouco de vinho

Eu também vi muita gente encontrar novamente o caminho do céu
Eu também vi muita gente voltar novamente ao convívio de Deus

Por um pedaço de pão e um pouquinho de vinho
Deus se tornou refeição e se fez o caminho
Por um pedaço de pão, por um pedaço de pão (Bis)

Por não ter vinho nem pão, por lhe faltar a comida
Eu já vi mais de um irmão desiludido da vida
E por não dar do seu pão, e por não dar do seu vinho
Vi quem dizia ser crente, perder de repente os valores morais
Vi que o caminho da paz só se faz com justiça e direitos iguais

Por um pedaço de pão e por um pouco de vinho
Eu já vi mais de um irmão tornar-se um homem mesquinho
Por um pedaço de pão e por um pouco de vinho
Vejo as nações em conflito e este mundo maldito por não partilhar
Vejo metade dos homens morrendo de fome, sem Deus e sem lar


      


      Vida cristã é vida de comunhão e comunhão é partir o pão com o próximo. Tenho ouvido de uns anos para cá com muito mais intensidade algumas falas de pessoas que dizem que se uma pessoa está passando fome foi porque ela mereceu, ou porque fez por onde estar naquela situação. Algumas dessas pessoas se dizem cristãs. Afora aquele grande exemplo que se tem do texto do AT. Onde a nora de Noemi, a moabita Rute, saiu para colher espigas(Ru. 2:1-3), há outros tantos exemplos de passagens bíblicas que o Senhor recomenda o cuidado para com aqueles que se encontram em uma situação de dependência e fragilidade, enfrentando o flagelo da fome(Dt. 15:7). O mais triste é que aqueles que se insurgem contra estas situações e passam a construir um discurso de natureza social e política tendo como inspiração a própria escritura sagrada são estigmatizados como esquerdistas, esquerdopatas e comunistas.


      Todos nós temos ciência de que sempre e em qualquer situação, existem os espertos que adoram tirar vantagens, inclusive das desgraças alheias. Existem pessoas que fazem sim discursos demagógicos sobre a desgraça dos pobres e tiram  algum tipo de vantagem ou dividendo nisto. Temos um exemplo disso no NT. Lá no capítulo 12 e verso 3 do Evangelho de João, Maria uma das irmãs de Lázaro unge a Jesus com um unguento caríssimo. O texto neste momento faz menção de que judas Iscariotes, segundo este mesmo texto, aquele que cuidava da bolsa, ponderou sobre o desperdício daquele líquido balsâmico dizendo que se o vendessem poderia se adquirir um bom dinheiro para ajudar os pobres. E o verso 6 ao comentar esta fala de Judas Iscariotes, informa que esta afirmação de Judas não procedia por causa dos cuidados que tinha com os pobres, mas porque era ladrão e subtraia parte dos recursos que entrava na bolsa que ele cuidava. O próprio NT nos deixa este exemplo de uso demagógico da pobreza com objetivos de se conseguir vantagens.


      Pra encerrar quero mais uma vez lembrar o quanto é maravilhoso vivermos em comunhão. Já falamos do Salmo 133. Mas quero lembra neste momento de como a igreja surgiu e de como ela era era em seus primórdios com apenas uma expressão que está lá em (Atos 2:44): "E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo EM COMUM". Este é o melhor exemplo para encerrar este texto. Este é o melhor exemplo para fazer referência aquilo que os teólogos chamavam de COMMUNION SANCTORUM, a comunhão dos santos. Todavia, jamais nos esqueçamos que o melhor exemplo de praticidade e de comunhão temos em Cristo Jesus. A paz!!!

      



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¹COMPANHIA, É um substantivo feminino de origem latina que serve para ressaltar a presença de uma ou mais pessoas. Nada melhor do que a metáfora de uma refeição conjunta - cum-edere-panes. Logo, o companheiro é aquele que come pão junto.

²STOT, John. O discípulo Radical, Ultimato, Viçosa/MG, p. 10. 2011

³É o Latim DISCIPLINA, "instrução, conhecimento, matéria a ser ensinada", E esta deriva de DISCIPULUS, "aluno, aquele que aprende", do verbo discere. 

     

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