<>Leitura do evangelho de Mateus capítulo 25.








     As duas parábolas deste capítulo são o complemento da seção que se inicia no capítulo 24:37-25:30(KÜMMEL, Werner Georg. Intr. ao Novo Testamento, p. 125). Curiosamente no capítulo 24:37, ainda que não seja o objeto desta leitura, revela nas palavras de Jesus como os homens desde os tempos do patriarca Noé encaravam a vida desde uma perspectiva de relacionamento com Deus. E na expressão: "Casavam-se e davam-se em casamento", está todo o sentido que o termo banalidade empresta para aqueles que cuidam de suas vidas como se não tivessem qualquer tipo de responsabilidade para com o próximo, para com Deus e para consigo próprio. E de repente ele se dá conta do elemento trágico a que sua vida está submetida. No gênero lírico grego conhecido como tragédia, o exato momento em que o homem se vê em meio a esta situação, o sentimento que se tem é que nem mesmo os seus deuses são capazes de interferir em seus destinos cuja a tragicidade é irreversível(Moĩra)*.

     Ao adentrarmos no capítulo 25, nos deparamos com a parábola das dez virgens. Nesta parábola Jesus toma a iniciativa de comparar o Reino dos Céus às dez virgens, uma vez que é unânime a expectativa de cada uma delas para encontrarem-se com o noivo. E é com esse tipo de expectativa e com suas respectivas lâmpadas que partem ao encontro do noivo. Fica claro que as dez virgens estão imbuídas do mesmo tipo de iniciativa. A diferença entre uma metade e outra é de que uma metade é composta por insensatas e a outra metade de prudentes_ MORAI** e PHRONIMOI***. O fato de as insensatas não terem levado azeite sobressalente demonstra uma atitude banal e racional ao lidarem com aquilo que Tillich chama e que é tratado por ele como conceito de ultimacidade das coisas em sua Teologia Sistemática(Passim). Doravante, desde o advento do período iluminista, este conceito passou a ficar restrito ao domínio da religião propriamente dita. Isso fica cada vez mais específico a partir do momento que se estabelece para efeito de metodologia onde o objeto de estudo é a filosofia da religião e a distinção dos fatos e aspectos relativo a cadeia do significado, bem como a distinção da religião rumo ao incondicional, assim como a cultura rumo às formas condicionadas e sua unidade.(PAUL, Tillich. Filosofia de la Religion. p. 46).

     Ao que parece a atitude das cinco virgens insensatas não corresponde ao grau de expectativa única que deveriam depositar diante daquela situação. Elas agiram sim com muita racionalidade e praticidade, porém, se é que se pode chamar dessa maneira, sem qualquer tipo de análise de riscos por algum tipo de eventualidade que intercorresse nesta situação. As cinco virgens prudentes também tinham uma expectativa única que as faziam concentrarem-se apenas na chegada do noivo. Entretanto, estavam preparadas para qualquer eventualidade que acontecesse entre a espera e a chegada do noivo. Por isso a prudência em levar recipientes de azeite sobressalentes. O que há de diferencial entre um grupo e outro é o fato de que, embora imbuídas da mesma expectativa, ou seja a chegada do noivo. Entretanto,a única certeza que se podia ter era de que ele viria, mas nenhuma delas sabia quando. As prudentes viram um tempo além do tempo em que o azeite que já estava nas lâmpadas queimava. As insensatas foram insensatas exatamente por limitarem suas racionalidades apenas ao que as lâmpadas comportavam de azeite.

     A advertência quanto ao que aconteceu às cinco virgens insensatas e o desespero delas batendo à porta depois de a mesma ter sido fechada, oferece a oportunidade em se discutir que elas não são reconhecidas como dignas de adentrarem à câmara para as bodas. Foi a atitude imprudente delas o motivo de não serem reconhecidas como dignas de entrarem naquele lugar. Não é suficiente  que se nutra algum tipo de expectativa quanto a parousia****, ou volta de Cristo. Até mesmo aqueles que não comungam do mesmo pensamento e crença cristã de que existe uma promessa de volta de Cristo, têm consciência da mesma. E assim, não têm o mesmo empenho de tal forma que não se preparam a altura de se esperar pela concretização no tempo e no espaço, do tipo histórica, que um evento como este pede. As cinco prudentes podem ser equiparadas no sentido da expectativa pela espera do noivo àquele a fan de que ainda que o noivo não estivesse ali, agiam como se fosse uma realidade concretizada. Escatologicamente era o tipo de atitude que os judeus convertidos a Jesus expressavam de forma verbal ao se encontrarem. E que se traduz pelo termo de saudação entre ambos registrado em I Coríntios 16:22_ Maran atha_ O Senhor vem(Maran), Ele está aqui(Atha). O sentido de escatologia não é necessariamente algo que está para tomar lugar no futuro, e sim o futuro que se vislumbra e, portanto, se antecipa.

     Entramos agora na parábola dos talentos, onde a relação colocada sob análise é a que existe entre Senhor e servo. E a principal questão a ser levantada não é necessariamente a performance ou desempenho de cada servo. Uma vez que, a própria parábola faz menção de que na distribuição dos talentos, o Senhor os distribui conforme a capacidade de cada servo. Um dos pontos a ser levantados é que os dois primeiros servos fizeram as aplicações certas com os talentos que estavam sob suas responsabilidades e não subestimaram o fato de que num futuro indeterminado eles teriam que prestar contas a seu Senhor. Outro dado de suma importância reside no fato de que estes talentos constituem como elemento simbólico de que, muito embora, o Senhor delegue a seus servos a liberdade de aplicar os talentos como bem entenderem. Eles também têm consciência de que os mesmos são figuras representativas da presença do Senhor deles, mesmo em sua ausência.

     Mesmo sem a presença física do Senhor os servos sabem que ainda lhe devem obediência. Já o terceiro servo tem consciência de todas as qualidades do seu Senhor. Porém, será tido como negligente por desconsiderar as consequências positivas ou negativas de uma prestação de contas. Ao agir da forma como agiu enterrando o talento, ele subestimou sua própria condição de servo vinculando-a a estimativa de seu Senhor ao colocá-lo sob a responsabilidade e gerenciamento de apenas um talento. De acordo com o ajuizamento que pesou sobre si a partir das considerações de seu Senhor, ele não soube ser fiel sob aquele pouco a que fora constituído. Conforme o que foi dito aqui desde o início desta leitura, no sentido de que as parábolas deste capítulo 25 juntamente com o trecho do capítulo 24:37 em diante que o antecede. São caracterizadas como parábolas escatológicas. As quais para serem classificadas dessa maneira precisam estar atreladas à volta do Cristo.

     O que fica bastante claro até aqui neste processo de leitura empreendido sobre o capítulo 25 e que torna decisivo seu desenvolvimento, em que desde o início se tem constatado, é o fato de que em todas as situações que as parábolas descrevem são levados em considerações os respectivos contextos sociais de inserções de suas narrativas. Isto se depreende quando o assunto são as bodas e a forma como dez virgens as encaram e sobre as mesmas projetam suas expectativas. Fazendo com que ainda assim se ofereça um diferencial de atitudes que ocasionará a atribuição ajuizadora de uma primeira metade como virgens insensatas e a outra metade como prudentes. Como consequência as insensatas ficarão de fora da câmara nupcial e, portanto alijadas do convívio do noivo, que sequer as reconhece quando atrasadas, assustadas e desesperadas, batem à porta na esperança de poderem ainda fazer parte daquela celebração nupcial. Se alijaram do convívio por displicência e insensatez. 

     Na segunda parábola do capítulo 25 que trata dos talentos. O problema reside na falta de ação ou proatividade do servo que recebe apenas um talento. Ele pecou pela falta de iniciativa e não quis arriscar algum tipo de investimento que o levasse a perder até mesmo o talento que dispunha. Na observação e juízo de seu Senhor, ele poderia ter colocado o talento nas mãos dos banqueiros e na sua volta teria recebido o seu talento acrescido de algum juro. Outro fato curioso e que revela a falta de iniciativa deste servo e que, por sua vez, não era do desconhecimento dos demais servos, é a descrição de caráter do seu Senhor e que nesta relação Senhor-escravo***** fica mais patente no terceiro servo que apenas recebe um talento. É fato que numa relação de poder como esta observamos a vigência do imperativo da força de maneira impositiva. Ocasionando com isso uma relação de medo por parte dos servos. Com esta parábola percebe-se que muito embora os três servos estejam subjugados por esta relação de forças, ainda assim o homem precisa avaliar sua capacidade por iniciativa própria de ultrapassar estes limites impostos, pois eles são construções sociais. No caso da narrativa dos talentos, a relação de forças entre Senhor e escravo foi suficiente para inibir qualquer tipo de iniciativa daquele servo.

     O tipo de ajuizamento a que foram submetidas as cinco virgens que não trouxeram azeite sobressalente foi a imprudência, e pode-se afirmar que foi uma imprudência coletiva, afinal de contas, eram cinco. E isto lhes custou a não entrada para as bodas e convívio com o noivo. O ajuizamento a cerca do servo que recebeu um único talento foi a sua falta de iniciativa por aceitar, levado pelo medo de seu Senhor, ser reduzido a condição de servo sem que com isso tivesse tirado qualquer tipo de proveito para suas iniciativas próprias. Os dois primeiros servos souberam explorar muito bem suas condições de servos que aliada às suas iniciativas trouxeram dividendos em suas aplicações. É evidente que no mundo dos negócios, é muito importante durante as tratativas que são feitas, o tipo de suporte que possuímos quando estamos negociando. Os dois primeiros servos quando negociaram e duplicaram seus respectivos talentos, não negociaram por eles e sim por seu Senhor, por serem apenas prepostos. O servo negligente deixou que apenas a figura imponente de seu Senhor lhe trouxesse assombro. Se eu tenho procuração para negociar em nome de uma grande corporação ou de um grande banqueiro, por exemplo, é com aquele banqueiro ou corporação que o outro contratante está lidando ao negociar comigo em nome da corporação ou banqueiro que represento. Ainda assim, eu preciso ter iniciativa.

     A pena a que foi submetido o servo inútil tem uma aplicação semelhante a das cinco virgens insensatas. Ele foi alijado do convívio de um mundo de construção social onde a prevalência e dominância do seu Senhor é inquestionável. Foi por ordem deste mesmo Senhor que ele é lançado nas trevas exteriores, onde conforme a narrativa, existe pranto e ranger de dentes. Inexiste nessas trevas exteriores qualquer tipo de relação social aceitável, ou seja, não há nenhum tipo de construção de mundo onde as relações de força e poder sejam mediatizadas pela presença de um Senhor que se torna, por conta disso, o fiador desse contrato social e suas conveniências. Os conhecimentos atuais a cerca da história da tradição do material sinótico mostram que os discursos proferidos por Jesus são artificiais. Entretanto, a preciosidade das composições oferecem um quadro grandioso dos temas centrais da pregação de Jesus e de sua síntese didática feita pela igreja. A espinha dorsal sobre a qual se sustenta o evangelho de Mateus, tem como critério de desenvolvimento unidades didáticas e sistemáticas reunidas em seções de acordo com os assuntos. Esses discursos são composições preciosas que oferecem um quadro grandioso dos temas centrais da pregação de Jesus e da sua síntese judaica feita pela igreja. São definidas como seções didáticas identificáveis pela forma conclusiva característica. Isto inclui também o último discurso de 23:1 em diante e o vincula a um único tronco, a saber, um contra escribas e fariseus(Cap. 23) e o outro, sobre as últimas coisas e o juízo universal(Caps 24-25).(SCHREINER, Josef & DAUTZENGERG, G. Forma e Exigências do Novo Testamento. p. 275-276).

     Por último e derradeiro, adentramos a seção que trata especificamente sobre o retorno do Filho do Homem. E que é um referência direta a Jesus. É também um discurso colocado como proferido por Jesus. O verso 31 nos dá conta de que em sua volta ele vem em glória e acompanhado dos santos anjos. E é no trono de sua glória que ele se assentará. A tônica dada pelo verso 32 é de que este evento tem características globais, pois ao se assentar em seu trono todas as nações se reunirão diante dele. Todavia, sua primeira atitude não será a de um rei ou governante secular e sim a de um pastor quando separa os bodes das ovelhas. As ovelhas ficarão a sua direita e os bodes à esquerda. E as palavras direcionadas aos que estavam a sua direita é de boas vindas ao Reino. E acrescenta que eles são bem vindos por serem benditos, abençoados do Pai e são convidados a tomar posse como herança de um reino há muito tempo preparado para eles, desde a fundação do mundo, nas palavras de Jesus.

     A ênfase para que estes tenham direito como herança de posse neste reino está relacionada àqueles flagelos que sempre assolam o homem e principalmente àqueles mais indefesos: Fome, sede, abrigo, nudez pela falta de vestimenta, visitação aos doentes e detentos em prisões. E qual não será a surpresa destes que se encontram a sua direita ao ouvirem essas palavras do rei, ao mesmo tempo que o indagam em que momento de suas vidas eles o encontraram nestas situações de fragilidade humana e o teriam ajudado. A emblemática reposta de Jesus tem um forte apelo de natureza social pelo fato de destacar o sentimento de solidariedade que deve se fazer presente em cada um de nós. Ou seja, independente de quem quer que seja estes sempre tocaram suas vidas com um forte sentimento de solidariedade para como os mais necessitados. Eles foram, na essência movidos por misericórdia, ou deixaram ser envolvidos pela misericórdia divina. A designação pequeninos, indefesos, ou desfavorecidos, ilustra bem que essas pessoas foram movidas pelo sentimento de amor ao próximo e que amar o próximo é amar a Deus e amar a Deus é amar o próximo.

     Ao direcionar suas palavras àqueles que se encontram à sua esquerda as coisas já mudam de aspecto. E suas palavras soam como um grande brado de censura acompanhada de um juízo rigoroso. Eles são chamados de malditos ou amaldiçoados. E pelas razões que fizeram com que fossem separados dos demais, e, no caso destes a esquerda, foram equiparados ao bodes. Eles não praticaram nem um ato sequer de solidariedade humana para com os seus semelhantes tal como na descrição dos que estão à direita de Cristo fizeram. Pelo contrário, muitos pequeninos e indefesos passaram por suas vidas sem que fizessem caso algum deles. O destino deles é o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos. Ou seja, o fogo eterno não estava preparado para eles. Para estes que agora se encontram a esquerda do Filho do Homem também estava preparado como herança o Reino de Deus desde a fundação do mundo. Porém, uma vez que escolheram uma via diferentemente da solidariedade de amor a Deus e ao próximo, não haveria uma alternativa de destino diferente dessa que agora através do juízo divino é revelado nas palavras de Jesus pela sua presença e em cumprimento de sua promessa de volta.

     O fato de cinco virgens insensatas estarem de fora da câmara nupcial é sintomático e elucidativo, uma vez que demonstra que suas ações foram ajuizadas, muito embora estivessem em pleno gozo de suas faculdades mentais e tendo agido de forma livre e desimpedida. Ainda assim foram alijadas do convívio do noivo e ficaram de fora. No caso do servo e seu único talento, ele teria que ser essencialmente proativo ao negociar o talento sob sua responsabilidade. Tinha também por força de sua condição social enquanto servo que prestar obediência a seu Senhor. E entendo que, neste caso, não se pode qualificar ou comparar o este senhor da parábola como Deus. E a separação ocorrida na narrativa do juízo final feita por Cristo, onde o que está sob julgamento não é efetivamente a condição em que cada de um nós nos encontramos. Seja aquela em que a expectativa de vida é parecida com a dez virgens, ou a que a condição social destaca um tipo de relacionamento entre um senhor e seu escravo. Em ambas as situações o que se torna bem comum é o rompimento com qualquer tipo de meritocracia. E o fato de se apontar que aqueles que estão a direita do Cristo vão possuir um reino que está preparado desde a fundação do mundo. Mostra que estes através do tipo de vida que optaram para si ao se tronarem solidários para com seus semelhante, cumpriram e honraram com aquele objetivo proposto  Deus desde a sua criação. Pois tudo que criou era realmente muito bom. O Reino de Deus não é recompensa. Ele consiste de uma vocação natural fundamentada na Criação e jamais esquecida. Estamos falando de escatologia no evangelho de Mateus e ela nos remete aos princípios estabelecidos pelo próprio Deus em sua Criação

_______________________________________________________



Bibliografia



KÜMMEL, Werner Georg. Intr. ao Novo Testamento. Trad. Isabel F. L. Ferreira
         São Paulo, Ed. Paulinas, 1982, 798 p.


TILLICH, Paul. Filosofia de la Religion, Trad. Marcelo Péres Rivas.
       Buenos Aires, La Aurora, 1973. 185 p.

SCHREINER, Josef & DAUTZENGERG, Gerhard. Forma e Exigências do N.T.
        Trad. Benôni Lemos. São Paulo, Ed. Paulinas. 1977, 586 p.

RIENECKER, Fritz & ROGERS, Cleon. Chave linguística do N.T. Grego. Trad.
       Gordon Chown e Júlio Zabatiero. São Paulo, Vida Nova. 1985, 639 p.

 
_______________________________________________________


*Moĩra - Nominativo grego singular, feminino relacionado à divindade do destino.

**Morai - Nominativo grego plural, feminino - Estultas, tolas, insensatas.

***Phronimoi - Nominativo grego plural, feminino - Sábias, sensatas, equilibradas.  

****Parousia - Forma nominal do verbo grego Para eimi _ É um particípio presente grego na condição de um nominativo singular feminino. Termo do novo testamento que sempre se utiliza para se referir a expectativa dos discípulos pela volta de Cristo.





Texto - Isaías 57:1-2

Tema - Qual o papel do justo neste mundo?

ICT - O texto com base nestes dois versos destaca que há uma extrema indiferença na relação do justo com aqueles que vivem de praticar a corrupção de maneira contumaz.




Introdução


     A escritura, em alguns momentos e situações, dá um claro sinal de que o papel do justo, ou aquele que tem uma vida justificada por aceitar sobre si a soberana vontade de Deus tende a passar por esta vida despercebido. O tipo de manifestação a que se propõe o profeta não deixa de observar que ao se pronunciar sobre o justo torna claro que sua inserção no contexto social é realidade. Mesmo que do ponto de vista de uma cosmologia humana amoral, e anti religiosa(Não aberto a transcendência), o homem seja incapaz de ver e levar em consideração a existência de outro ser humano como seu próximo. Os homens compassivos são recolhidos sem que ninguém faça deles caso algum. E esta falta de consideração tem como consequência a prática do mal, uma vez que tal prática acarreta cegueira espiritual e insensibilidade. Quem se entrega a uma vida de contumaz pecado e corrupção fica entorpecido do ponto de vista de suas ações morais e das ações morais do seu próximo. Este é o panorama ético que a escritura tipifica como sendo daquele que não é temente a Deus.

     O aumento da iniquidade que nesta época se dá de forma exponencial inibe qualquer tipo de solidariedade entre os homens. Este aumento se dá de duas formas, tanto pelo fato de que a densidade populacional tende a crescer, bem como pelo fato de que o homem a cada dia que passa se torna um pecador contumaz. Isto provoca estragos jamais vistos em nossos compromissos morais e comunitários que devemos ter uns com os outros. Esses versos refletem uma espécie de desânimo e lamento por parte do profeta. Eles afloram sua memória afetiva e desencadeia um inconformismo de sua parte com a situação. E mesmo tendo a consciência do pecado como um dano sério que causa ao homem. A morte ou perecimento do justo em sua visão acontece ou é antecipada porque Deus age de forma providencial para com ele. Ou seja, o que acontece com o justo não é o mesmo que acontece com uma celebridade.

     O tipo de providência divina se deve ao fato de que: "Os homens compassivos são recolhidos sem que alguém considere que o justo é levado antes do mal." Deus não quer que os seus filhos sejam contaminados ou influenciados com esse reino da maldade que tem tomado conta do mundo. Isto é tão verdade que o próprio Cristo faz menção de que o aumento exponencial da iniquidade é capaz de fazer com que o amor de muitos se esfrie(Mateus 24:12). A metáfora do sacrifício está muito presente já que o Senhor ao tomar para si os seus servos, o Salmo 116:1 afirma que a morte dos santos é preciosa a vista do Senhor. A rigor, é desde uma perspectiva paradoxal onde o justo é justo por buscar andar nos caminhos do Senhor. Isto implica dizer que ao buscarmos a glória do Senhor anulamos qualquer tentativa de que os holofotes deste mundo concentrem seus focos sobre nós. Escolhemos neste mundo a glória do Senhor. A epístola aos Hebreus ao se pronunciar sobre aqueles que ocupam atualmente a galeria da fé, nos fala da opção e escolha de Moisés que recusou ser chamado filho da filha do Faraó, do que por um pouco de tempo ter o gozo do pecado(Hebreus 11:24-25)

     Para aqueles que experimentam a partida ou morte de parentes mais próximos, é sabido e agora se experimenta algo de muito amargo e dolorido. Esse amargor se traduz por um sentimento de perda e de vazio onde nada nem ninguém é capaz de ministrar uma palavra de conforto e consolo que seja integralmente eficaz. A dor fica ainda maior por termos enquanto constituição de nossa memória aquilo que chamamos de afetividade. Por outro lado, essa afetividade não mais se reproduz pela presença daquele que se foi. Chega ser uma afetividade carregada com uma série de sintomas de natureza patológica. Os gregos sabiam como ninguém dar forma e expressão a esse tipo de sentimento com a atribuição e fruição de significado do termo POTHOS_ cujo enfoque é a eclosão de todos os sentimentos.

     Uma das mais importantes caracterizações do que é a vida humana está na conceituação apurada e tão massificada do pensamento grego mediatizada pelo gênio de Aristóteles, quando afirma que o homem é um animal político(Zoon Politikòn). Todos os animais são gregários, mas o que lhes falta segundo Aristóteles é a linguagem(Logos). É justamente a linguagem o elemento que nos possibilita, pela associação do que temos em comum, a construção dos conceitos de família e de estado(MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia. p. 56). A linguagem tem como elemento primordial a reprodução e consequentemente a preservação da memória. E é justamente por meio dela que a afetividade toma forma e aflora. Ainda que não retorne por meio daquele sobre quem se construiu essa afetividade, a memória do mesmo continua viva por meio de nossas formas de expressão entre as quais a linguagem(Língua enquanto conceito linguístico, já que existem outros tipos de linguagem) se destaca.

    Aquele sobre quem se construiu o sentimento e a afetividade, embora não se encontre mais entre nós para cumprir com essa função essencialmente humana é também o elo pelo qual constatamos a perda e consequentemente nos vimos envolvidos e tomados pela dor. A dor por conta desse sentimento sem retorno é muito maior e simetricamente proporcional a angústia que invade o nosso ser. Outro dado auferido a partir dessa perspectiva é que a linguagem enquanto elemento capaz de condicionar tudo que nos caracteriza como seres humanos, também proporciona, por se constituir neste canal, como nos relacionamos com o mundo externo, e como a partir desse relacionamento atribuímos valores. Essa peculiaridade humana já se encontra determinada na forma como o Gênesis descreve a criação do homem por Deus e os atributos e qualidades que Deus coloca no homem. Tais como a capacidade de dominar e controlar a fauna, por exemplo(Gênesis 1:26; 2:19-20).

     A proposição do tema sob a forma de pergunta onde se indaga a cerca do real papel do justo neste mundo. Ainda não se debruçou objetivamente nesta temática. E, dá para se afirmar que não seja algo sobre o qual naveguemos em que possamos dizer que sejam águas calmas e com um mínimo de agitação. Considerando primeiramente, e seguindo a própria dinâmica do texto em questão de que estamos falando de alguém que é passível de ser chamado de justo. Mesmo que a dinâmica seguinte de todo o capítulo 57, o profeta fala da iniquidade que tomou conta da vida de seu povo. O pano de fundo de onde emerge a atribuição de justo está inserido no cenário político e religioso de Israel durante o período demarcado pelo vida do profeta Isaías. Que, diga-se de passagem, perdurou e resistiu à passagem de quatro monarcas(Isaías 1:1). Aduz-se a isso também a passagem onde ocorre a vocação do profeta. Quando no capítulo 6 do livro que leva seu nome, ele tem a visão de Deus em seu trono e rodeado de serafins. Neste relato o profeta reconhece a sua condição de pecador e de que se não fosse a misericórdia divina em purificar os seus pecados ele pereceria diante daquela visão THEOPHANICA(Isaías 6:5-7).

     Temos então que considerar o fato de que aqueles que são chamados de justos, são justos pelo fato de que por meio de uma intervenção divina e miraculosa seus pecados e iniquidades foram purificados. Logo, e, considerando novamente o pano de fundo de depravação moral e iniquidade do povo de Deus de onde emerge a figura do profeta, podemos inferir que justo em sua concepção é aquele que é purificado por Deus. E que ao abdicar de tudo neste mundo a única coisa que tem para se apegar, conforme o profeta Habacuque é a sua fé(Habacuque 2:4). O seu tempo de permanência vivendo pela fé neste mundo depende não apenas de sua capacidade para resistir as investidas malignas, mas também do nível de saturação e intensidade da imoralidade humana. No passado do profeta estão os relatos de experiência do seu povo onde Deus agiu por conta do aumento da iniquidade e pecado no mundo. No relato dessas ações divinas, o Senhor preferiu destruir os iníquos livrando os seus servos(Gênesis 6:5-8; 19:23-25). Porém, neste capítulo 57 do livro do profeta, a opção divina é de tirar, ou tomar para si os seus servos deste mundo de iniquidade de tal maneira que eles não vejam e não se corrompam juntamente com os iníquos.

     Mas ainda não respondemos de maneira satisfatória em que consiste o papel do justo no mundo. Quando Abraão toma conhecimento de que Deus haverá destruir essas duas cidades impenitentes, Sodoma e Gomorra, o patriarca intercede junto a Deus afirmando que lá também existiam pessoas que levavam uma vida digna e justa e que elas não mereceriam pagar pelos pecados da outra parcela. Abraão em suas ponderações argumenta com Deus se Ele destruirá também o justo com o ímpio? As interpelações do patriarca junto a Deus vão desde 50 a 10 justos que por lá pudessem existir. E, caso esta ponderação do patriarca procedesse, se ainda assim destruiria aquelas duas cidades e estes homens justos com os ímpios. E sempre a resposta divina enfatizava que por amor a estes justos o Senhor não as destruiria(Gênesis 18:23-33). Atrevo-me a dizer que os justos são aqueles por meio de quem Deus revela o seu lado misericordioso. E é justamente o reconhecimento dessa misericórdia que, segundo o profeta Jeremias, é a causa de não sermos consumidos(Lamentações 3:22).

     Para Jesus ser justo é ser sal da terra(Mateus 5:13) e luz do mundo(Mateus 5:14). Aqueles que apontam para uma dimensão vertical e transcendente onde o Deus todo poderoso e Pai de todos se encontra e de forma amável e misericordiosa nos observa e nos indica o caminho de acesso até sua presença. Ou seja, experimentamos a todo momento, mesmo que não as reconheçamos como vindas da parte do Senhor, as doces misericórdias divinas. A própria missão do filho que veio a este mundo para todos tenham vida e vida em abundância(João 10:10). Mais uma vez a missão do filho ao falar de vida é a de conscientizar o homem para uma abertura ao transcendente onde Deus o Pai se encontra. Ou seja, a capacidade de ser justo ocorre pela ação miraculosa de Deus que agora em Cristo opera o milagre da transformação, da mudança de rumo, de vida, de valores e de se constituir a partir de então de cidadão do Reino de Deus. O papel do justo, a começar pelo exemplo e ensinamento deixado por Cristo, é de apontar para uma dimensão de Reino e de império da vontade divina, onde a paz, a justiça, a prosperidade e a eternidade são elementos constitutivos dessa dimensão.

     Fora e a parte desses critérios estabelecidos elo próprio Deus, não existe paz, prosperidade, justiça, amor, etc. Na realidade onde o império do mal e da iniquidade vigora, quando se fala em justiça divina, conforme o próprio ensinamento de Paulo em Romanos 1:18 afirma, é por onde se manifesta a ira divina. Não dá para permanecer por muito tempo em meio ao pecado e toda sorte de iniquidade sem que com isso não sejamos afetados pela manifestação da ira divina. Temos a nítida consciência de todo o mal que nos cerca. Devemos fugir tanto do mal quanto da sua aparência(I Tessalonicenses 5:22). E tudo isso começa com uma atitude de inconformismo de nossa parte(Romanos 12:2). O apóstolo ao fazer menção dessa atitude de inconformidade com este mundo, mas na verdade ele faz menção de sua época específica(Era, século, atualidade, etc.). E revela uma perspectiva subjetiva a partir de uma visão das coisas que incluem como os poderes do mundo e seus impérios se fundam. É uma advertência às nossas relações com os poderes constituídos e por de onde a maldade e seus mecanismos se imiscuem. O apóstolo está advertindo para que não se entre em composição com os esquemas de poder deste mundo.

     E para encerrar, basta que tenhamos em mente que não fomos chamados para sermos celebridades. Pelo, contrário a atribuição de justo como aquele que é justificado por aceitar de forma incondicional a soberana vontade divina sobre sua vida, implica em não buscarmos o foco dos holofotes. Implica em sermos, em algum momento, tomados e levados pelo Senhor a sua presença para que não vejamos a corrupção e a maldade de tal maneira que por elas sejamos afetados. Por um pouco de tempo, até que se chegue a colheita, convivemos como o trigo no meio do joio(Mateus 13:29-30). Pois, nessas condições, Deus não seria justo para com o justo, se na hora de erradicar a maldade aniquilasse toda a raça humana, inclusive, aqueles que por Ele são justificados. Logo, e tendo como fundamentação a resposta dada a Abraão de que por amor àqueles justos que, porventura existissem naquelas duas cidades impenitentes(Sodoma e Gomorra), Ele não as destruiria. E principalmente, por seguirmos os preceitos divinos, não devemos nos preocupar pelo fato de que mesmo sendo proativos na obra do Senhor não ocuparmos nenhum tipo de posição de destaque, pois foi exatamente para isto que fomos chamados e é na condição de servos do Deus altíssimo que nos encontramos.

_______________________________________________________     
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia.
         Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 4 ed. 2005, 179 p.
 





SOLA SCRIPTURA





     Faz algum tempo que objetivo a luz de algumas percepções desenvolver considerações e argumentos que levem em conta a ideia de que nossa expressão de religiosidade não está pautada tão somente por um livro. Aliás este é uma das principais linhas de abordagem e argumentos desenvolvido e defendido por Êmile Durkheime(DURKHEIME, Êmile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Ed. Paulinas, 1989. p.). Isto também não significa que a intenção ao redigir este texto tenha como objetivo deixar de lado toda uma tradição construída ao longo de muitos séculos sobre a hermenêutica bíblica. aliás, bem antes de uma definição do tipo sociológica e Durkheimiana quanto a escritura sagrada ser entendida como um livro de regras para a vida e religiosidade judaica e cristã. Este aspecto e conceito já se encontra bastante definido desde que se deduz conforme critérios hemenêuticos, que estamos falando de uma religião que se ensina e se aprende(FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do A. T. p. 14).  A rigor, a vida e experiência cristã, nunca esteve pautada apenas por este livro. Que no âmbito de uma vida cristã e religiosa, e seu impacto no encontro com as diversas culturas e povos da vida missionária dos primeiros cristãos. Principalmente naquela parte que cuidou da anunciação sob o espectro e formato de proposição para uma Nova Aliança, Novo Testamento. A qual constitui-se efetivamente de relatos de testemunhos de como as pessoas recebiam a palavra por meio dos ensinamentos do mestre. E posteriormente como se produziram os escritos a partir do encontro dessas pessoas tanto com o testemunho vivo daqueles que o ouviram, quanto com o relato oral de algumas dessas testemunhas ainda vivas. 

     Neste caso, em especial, estou me reportando, quando falo de texto sagrado, à Bíblia. É aquela antiga e sempre renovada percepção de que pelas características que nos cercam e que estão diretamente relacionadas a algumas expressões dessa religiosidade. Uma delas, e por ser um sistema religioso fundamentado em um texto que se reputa como sagrado. É que o cristianismo bem como o judaísmo e o islamismo e algumas outras religiosidades, não apenas estas que foram nominalmente listadas, são tidas como religiões de livros. Porém, demandam algum tipo de especialista para o seu manuseio e interpretação que atentem para as demandas daqueles que se colocam na condição de seus fiéis. Então, as percepções que doravante serão expostas têm um certo grau de composição histórico-hermenêutica. Pois visa acompanhar a natureza do desenvolvimento histórico de como se constrói o princípio Palavra de Deus até que o mesmo passa a ser identificado com os relatos contidos em um livro.

     Com relação a livros ou documentos tidos como sagrados, eles trazem consigo a percepção e entendimento de que são obras em que o seu autor, ou os seus autores, foram pessoas que em um determinado momento se sentiram iluminadas por algum tipo de inspiração ou vocação divina e, sob os auspícios dessa inspiração, quem sabe tomados por uma percepção intuitiva que desse relevância ao que chamamos de transcendência, e então produziram tais literaturas. São por isso mesmo reconhecidas como literaturas sagradas. O que me interessa a partir dessas palavras introdutórias é estabelecer um consenso a cerca da natureza desses escritos. Acho que quanto a isso não existe dificuldade alguma para se chegar neste consenso. Por outro lado, e especificamente quando a partir do consenso criado, nos reportamos de maneira mais específica a escritura que regula os princípios da fé, especialmente a cristã. Pois, é o que nos interessa neste texto. Existe a necessidade de uma maior contextualização desse princípio regulador.

     Históricamente esse princípio da escritura como elemento regulador da vida dos fiéis já fazia parte da vida pregressa da igreja antes da eclosão do movimento reformador do século XVI. A escritura, desde que as principais querelas quanto a sua definição canônica foram relativamente resolvidas, sempre foram objetos de estudos e de pesquisas(Os monastérios e seus monges copistas estão aí para reforçar este argumento). Ela era evidentemente, desde muito cedo, objeto tanto do estudo para a fundamentação dogmática e doutrinal dos pressupostos sobre os quais se apoiava a cristandade e a sua relação com a hierarquia e aqueles que a serviço dessa mesma hierarquia, bispos(SEEBERG, Reinhold. Manual de Historia de las Doctrinas, tomo II, p. 76) se antepunham como mediadores da graça e dos demais sacramentos da santa igreja católica e apostólica, porém, ainda não romana. Curiosamente, e por mais que a escritura vislumbre algum tipo de relação hierárquica entre a igreja e seus fiéis na literatura neo testamentária. Todavia, os escritos que melhor fundamentam essa experiência de relação hierárquica entre o fiel e a igreja encontram-se registrados em epístolas que não fazem parte do cânon. 

     Ainda não dá para se reportar a escritura, especialmente do Novo Testamento, no período conhecido como era dos Pais Apostólicos. O conceito de escritura ainda segue a dinâmica adotada pelo Novo Testamento quando ao fazerem menção à literatura do Antigo Testamento e a sua autoridade intrínseca. Muito embora os escritos dessa geração de bispos que sucedem aos apóstolos não sejam, ou não tenham atingido o grau de canonicidade. Pois, as principais características de composição dessas epístolas são as homílias. As quais dão uma complementariedade e são ao lado dos textos do Novo Testamento as fontes mais antigas que possuem como testemunho da fé cristã.  Mesmo assim, eles reproduzem com extrema facilidade os conceitos de fé e os costumes que prevaleceram na igreja desde as primeiras congregações(HÄGLLUND, Bengt. História da Teologia, p. 13). Ou seja, pelas razões que até aqui foram dadas, e, em virtude de que a esta altura da história cristã a composição destes livros ainda se encontre em uma etapa incipiente de formação e formatação tipicamente canônica. Para este momento seria inadmissível uma expressão e conceito como: "Sola Scriptura." 

     A oralidade dos testemunhos que era tradição apostólica ainda tem muito peso nesta fase de história igreja, além de ser considerada como autoridade decisiva de fé para a igreja e práticas congregacionais desde que, segundo Inácio, fosse mediatizada pela figura do Bispo(Ad Smirnenses 8:2). Não é difícil compreender a forma simples de organização hierárquica da igreja em torno da figura do Bispo. E se antes o episcopado enquanto valor de autoridade se equiparava aos presbíteros, ou colégio dos anciãos. Historicamente, sua figura vai se descolando e alcançando um grau maior de autoridade quando a congregação se reúne: "Ubi Christus ibi ecclesia" _ Onde está Cristo, ali está também a sua igreja(Congregação). E Este representado pela figura do Bispo(Apud.SCHOENBORN, Ulrich. Migalhas Exegéticas. São Leopoldo, Sinodal. p. 21)  Existe até mesmo o fato de que os Pais Apostólicos sempre fizeram menção em seus escritos dos quatro evangelhos. Portanto, e muito embora contribuam diretamente para a formação do Cânon através dos seus escritos ao reproduzirem no dia a dia e em suas homílias parte dessa tradição oral que entra na composição dos escritos neotestamentários. Ainda assim a se prevalecer o conceito de escritura, isso ocorre devido ao uso e referencia ao Antigo Testamento(Novum Testamentum in vetere latet, Vetus Testamentum in Novo patet.)*

     É evidente que o sentido de oralidade adquire o status de sua execução a partir do ponto de reunião do povo de Deus Intra muros ecclesiae**. Ali e justamente ali a Palavra é anunciação. Ali também, ela é a principal matéria do labor teológico. É bom que se esclareça que labor teológico intra muros da igreja é uma ocorrência que se dá por meio da liturgia. É no reconhecimento da autoridade do ressuscitado e o tratamento doxológico dessa obra que os primeiros crentes, também conhecidos como NAZARENOS, que dimensionamos essa teologia centralizada em Cristo. No evangelho de Mateus capítulo 6 e verso 13a encontramos as palavras de exortação finais numa orientação do próprio Cristo de como e de modo prático deveríamos buscar a Deus-Pai em oração. Esta oração, neste capítulo e evangelho em especial, revela o caráter educativo e catequético a que os crentes eram submetidos ao adentrarem às comunidades para as quais haverão de suceder aqueles que haviam partido. Por isso mesmo ela tem este formato doxológico e se encerra com um "AMÉM" enfático:    

13 - Et ne nos inducas in tentationem, sed libera nos a malo. Amen.


   Sola Scriptura a partir de uma abordagem reformadora ocorrida no século XVI é uma perspectiva oniabrangente  que a despeito de se objetivar e dar forma a seu caráter sintético, pode mascarar algumas outras situações que, a rigor, estavam presentes no interior da igreja. E, neste caso, vale dizer que por causa de seu caráter de racionalização doutrinal, pode não representar a riqueza e o teor revelacional dessas comunidades que ficaram no passado e início da era cristã. Sola Scriptura no período da Reforma é o contra ponto dos abusos hermenêuticos que se fizeram da Tradição, diga-se de passagem, no mundo ocidental. Neste ponto, este princípio se constitui num grande emblema e numa herança da qual não podemos sob hipótese alguma abrir mão. Por outro lado, enquanto marco regulador e balizador de nossas ações mediadas pelo conhecimento das escrituras. Essa racionalização é própria daquele tempo e sintetizou sim para aquele tempo esse elemento revelacional da escritura. Essa é a maneira que até aqui tenho encontrado para estabelecer um paralelo entre uma época conhecida como PATRÍSTICA e o conceito de escritura dessa época com o conceito de escritura que rivalizará com o que se fez da tradição no período da Reforma.

     Não há como não nos maravilharmos com a vitalidade da igreja que Cristo nos legou. A Reforma teve como principal característica essa vitalidade que fez com que a igreja se abrisse e se expandisse de uma visão monolítica de mundo e dela própria que tinha até aquele momento. A igreja estava se asfixiando cada vez mais e chegou o momento em que ela precisava deixar-se ventilar pelo sopro do Espírito. Aquela visão tomista de se aliar os conceitos de fé com a razão, via de regra, tendo como ferramenta o sistema filosófico aristotélico fazia da escritura apenas um elemento de apropriação de verdades objetivas e devidamente racionalizadas. A vitalidade lembrada neste texto ao se aludir a era patrística onde o conceito de palavra de Deus ainda se encontra entranhado e misturado com o testemunho vivo daqueles ministros que presenciaram a manifestação do Filho em sua encarnação(Lucas 1:1-2) continuava latente tal como se estivesse em um momento de maturação apenas se preparando para que no tempo oportuno pudesse florescer com aquela característica que é apenas sua, isto é, com vitalidade proporcionada pela ação do Espírito divino. 

      O sentido e aplicação de Paulo em II Coríntios 3:6 é de que não apenas a letra representada pela escritura de sua época, Antigo Testamento pode nos matar por asfixiamento. E como alternativa Deus nos oferece a partir de um relacionamento pessoal com Ele, desde que seja mantida e preservada a sua soberania, a capacitação pra que sejamos renovados e arejados. Para tanto precisamos reconhecer as nossas limitações. Não temos qualquer tipo de auto suficiência quando o assunto é o fato de que somos ministros da palavra de Deus a qual não se restringe a sua forma escrita e racionalizada. Sem essa relação mística e intuitiva a partir desse relacionamento com Deus não temos de nós mesmos nenhuma capacitação que seja propícia a nos transformar em ministros da palavra. Quando o assunto é revelação e esta mediada por Cristo, aquela capacidade inata de pensarmos a cerca de nós mesmos, não é suficiente. Então, a capacitação vem do alto. Logo, a mera forma da Lei, traduzida, ou representada pela letra(Gramma)*** pode nos matar. Caso não tenhamos o substrato do Espírito que nos foi outorgado como emblema em nossos corações(II Coríntios 3:3).

    Após estas considerações, será factível a afirmação de que além do substrato escriturístico, o profetismo, sua vitalidade e sobrevivência carece essencialmente dessa abordagem KERIGMATICA? A Palavra de Deus do ponto vista escriturístico e canônico tal como a conhecemos hoje e que se constituiu como um dos axiomas fundamentais da teologia da reforma: "Sola Scriptura", é produto da ação efetiva do Espírito divino, e portanto, devemos torná-la intocável e objeto de veneração e zelo como o judaísmo faz com a TORAH? Ou conforme o que Paulo nos adverte quanto ao extremo e excessivo zelo pela letra que, afinal de contas, pode nos matar? É fato que o surgimento e a abordagem do profetismo não está condicionado ao aspecto ditatorial de um livro. A escritura é a REGULA FIDES enquanto elemento e instrumento depositário da Revelação e dá testemunho tanto da própria Revelação quanto da maneira como recebeu e tem guardado essa Revelação.

      A escritura, muito mais que guardiã da revelação, do ponto de vista prático, é inspiradora de comportamentos. Desde que a tratemos conforme a ótica vigente de uma escatologia, ou quem sabe até mesmo enquanto filosofia de história. Neste caso, existe a necessidade em se chegar àquele consenso de que ao me ver no dilema entre continuar com uma vida como a que levo e todos os seus males contingenciais que é próprio de cada um de nós. Em um ato de mudança de meta, de rumo, de direção para  o que vinha fazendo até o exato momento que dou um basta a tudo isso. E aceito diante de um convite do mestre a caminhar com Ele andando sob a tutela de seus ensinamentos. Ela propõe uma espécie de comportamento e postura ética. Para tanto também propõe um novo nascimento, nova vida. O diferencial nesta proposição da escritura, é que para se desfrutar dessa nova vida é necessário sacrificar a velha, e para se sacrificar a velha basta tão somente uma relação e encontro místico com Cristo.    

     Por outro lado, há uma espécie de ação inibidora do profetismo neste emaranhado de conceitos e racionalizações a cerca da Escritura viabilizados no seio da igreja, enquanto escritos sagrados e o conceito de escritura enquanto abstração da mesma em sua forma escrita. Barth faz alusão a II Confissão Helvética, em seu primeiro capítulo quando no artigo que trata da pregação da Palavra de Deus(BARTH, Karl. Introdução a Teologia Evangélica. São Leopoldo, Sinodal, 1981. p. 113). Ali, ele adiciona ao contexto em que a palavra haverá de ser pregada a ideia de ANUNCIATIO _ Anunciação. Ele impõe ao sentido de anunciação o caráter soberano do que se anuncia, a palavra que por vontade própria quer refletir-se, quer ecoar ela mesma. Isto independe de uma ação efetiva do homem. Ao que parece neste novo ordenamento intra muros ecclesiae, o homem não tem papel proativo, já que como um servo, sua maior honra é servir a outro. A figura do profeta é substituída pela figura do ministro que segundo o próprio Barth na atual conjuntura da igreja pode se equiparar ao trabalho de um serviçal, ou DIÁKONOS. A expressão que se vale quando se trata da ministração da Palavra de Deus no interior da igreja é a de um serviçal que presta serviço ao Ministerium Verbi Divini.

     Digamos que haja um espectro de luz e seu raio de ação na base de uma cosmologia como a que vislumbramos desde a igreja, não enquanto instituição e povo de Deus que em parte ela é. Mas, desde uma igreja enquanto encontro onde Deus fala e apenas o ouvimos por sabermos que é realmente Ele que fala. Quando a partir dessa constatação começamos a refletir teologicamente ao mesmo tempo em que reproduzimos por experimentação própria do mesmo tipo de situação por que passaram profetas e apóstolos quando estes também se encontravam com Deus e faziam deste encontro a anunciação de sua palavra. Em algum momento desse processo, talvez por conta da sedução da contemplação. Nos vimos também seduzidos pelo interesse de demarcarmos, isolarmos e conservarmos algo de tamanha complexidade e que vou chamar simplesmente de REVELAÇÃO. Foi a partir deste momento que o conhecemos. Cresceu também o interesse de se preservar e perpetuar este tipo de encontro e para tanto nos valemos de um instrumental capaz de efetuar e alcançar tal objetivo. Ao que chamávamos de situação limite nesta relação com Deus, passamos a chamar pelo nome de Teologia e foi justamente aí que ela(Teologia) perde seu rumo. Como consequência, o próprio desenvolvimento de uma visão proativa do homem a relega para um papel secundário e historicamente ela deixa de ser a rainha das ciências. 

     Esta é uma das consequências enquanto efeito dominó do desmoronamento de um mundo montado cosmologicamente de maneira monolítica com base em uma visão verticalizada, porém imposta proativamente a partir do homem. Deus não poderia ser percebido num cenário reproduzido pelo homem e de fato não se faria presente em tais circunstâncias. Igreja deve ser a celebração do encontro com Deus. Para se falar de encontro é necessário que a outra parte, neste caso, o nosso lado, esteja preparada. Porém estar preparada a parte que compete a nós não significa a idealização de um ambiente. Significa antes de tudo sabermos do desprendimento divino que soberanamente vem até nós, fala conosco e temos a consciência de que o ouvimos. Isto não é diálogo até porque não estamos e nunca estivemos em condições de ponderar absolutamente nada quando com Ele nos encontramos. Afinal de contas, devemos e temos a obrigação de saber que ao nos sentirmos seguros e confiantes de que podemos ir ao encontro com Deus, avançamos neste objetivo de querermos conhecê-lo. Porém, há um certo limite e o limite é aquele em que temos a consciência de que nosso papel e função num determinado momento do nosso relacionamento com Deus é nos mantermos calados(BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade. Petrópolis, Vozes, 5a edição, 1999. p. 19).

     Para concluir, é fundamental que se construa o entendimento de que a igreja é o resumo e relato de uma situação encontro onde de fato Deus fala. Sabemos que é Ele quem fala e por isso o ouvimos. Entretanto, todo e qualquer tipo de conceituação de igreja que leve tão somente em consideração o seu acontecimento de natureza histórica e social na base de um ajuntamento de pessoas e sob a égide de um livro que dita regras cerimoniais para este tipo de ajuntamento. Consiste de uma análise superficial construída de uma perspectiva EXTRA MUROS ECCLESIAE. E acho que este não é o verdadeiro sentido dela enquanto dádiva divina. E muito menos representa a sua real e verdadeira natureza. Para ser e continuar sendo dádiva divina a igreja tem que revelar esta natureza divina. Mas, que em determinados momentos o próprio homem se encarregou de tentar ofuscá-la. O movimento reformador do século XVI, no exato momento que torna público seu protesto revelou essa vitalidade que nela se encontrava, mas que tinha sido deixada de lado. É o que chamo de vitalidade revitalizada e impulsionada pelo Espírito a luz desse princípio SOLA SCRIPTURA.

__________________________________________________________________________


* Novum Testamentum in vetere latet, Vetus Testamentum in Novo patet. - O Novo Testamento está no Antigo, O Velho Testamento está no Novo.

**  Intra Muros Ecclesiae - Dentro dos Muros da Igreja.

*** GRAMMA - Relativo a letra em grego. Termo que dá origem ao palavra de origem latina GRAMÁTICA.

**** Regula Fides - Regra de fé.

***** Predicatio verbi Dei est verbum Dei - A pregação da Palavra de Deus é Palavra de Deus.   
________________________________________________________














 BIBLIOGRAFIA


FOHRER, Georg. Estruturas teológicas fundamentais do A. T. Trad. A. Cunha.
         São Paulo, Ed. Paulinas, 1982, 392 p.

DUSRKHEIME, Êmile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. J. P. Neto.
        São Paulo, Ed. Paulinas. 1989, 536 p.

SEEBERG, Reinhold. Manual de historia de las doctrinas TomoII. Trad. J. M. Bo-
        nino. El Paso, Texas, C. B. de Publicaciones. 2a edição, 1967, 471 p.

HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia. Trads. M. L. Rehfeldt, G. K. Rehfeldt.
        Porto Alegre, Concórdia SA. 1981. 370 p.

SCHOENBORG, Ulrich. Fé entre história e experiência.
        São Leopoldo, Sinodal. 1982, 229 p.

BARTH, Karl. Introdução a teologia evangélica. Trad. Lindolfo Weingärtner.
       São Leopoldo, Sinodal, 3a edição. 1981, 125 p.

BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade.
       Petrópolis, Vozes, 5a edição. 1999, 296 p.






Texto - I Pedro 2:9 

 Vos autem genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisitionis : ut virtutes annuntietis ejus qui de tenebris vos vocavit in admirabile lumen suum.

Ὑμεῖς δὲ γένος ἐκλεκτόν βασίλειον ἱεράτευμα ἔθνος ἅγιον λαὸς εἰς περιποίησιν ὅπως τὰς ἀρετὰς ἐξαγγείλητε τοῦ ἐκ σκότους ὑμᾶς καλέσαντος εἰς τὸ θαυμαστὸν αὐτοῦ φῶς
Mas vòs sois a geração eleita, o sacerdòcio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;

1 Pedro 2:9
Mas vòs sois a geração eleita, o sacerdòcio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;

1 Pedro 2:9

Heranças e desafios da Reforma Protestante para a Igreja contemporânea


     Não resta dúvida que subsistem heranças significativas desse riquíssimo período conhecido pela história como Reforma Protestante. E o primeiro desafio para a igreja contemporânea e evangélica é a preservação dessas heranças. Caso contrário, seremos cooptados novamente por algum tipo de onda ecumenista(Globalismo) e mais uma vez seremos alijados do papel de protagonistas em assuntos de natureza religiosa. Já que, e usando um jargão dispensacionalista, corremos o perigo de nos submetermos a um governo mundial.

     O que está muito em moda hoje é o uso de um termo conhecido como globalismo, ou os globalistas. Este termo geralmente é atribuído aos grandes empresários, banqueiros e as corporações que eles representam. E que se tornou uma espécie de poder supranacional. E a principal acusação que se faz ao atual papado, é que ele está a serviço dessa onda globalista. Mas, o que precisamos refletir é: Até que ponto tudo isso tem algum fundo de verdade? E pensando de maneira entrópica nos rumos que a história tem tomado. O que se pode observar como reação a esses rumos, é uma onda conservadora e radical em que o mundo ocidental tem surfado atualmente. 

     É fundamental que viajemos pelo passado. A única dúvida de minha parte nesta viagem, é o porto onde devemos atracar como primeira parada com o objetivo de tentar entender o nosso tempo. A princípio, se queremos fazer uma viagem exploratória, e, o objetivo, ou ponto final da viagem corre seríssimo risco de naufrágio, existe a necessidade de se demarcar alguns pontos de paradas para abastecimento e, quem sabe, reuniões que visam fazer uma avaliação dos prós e contras quanto a seguir na perseguição do alvo, do porto que é onde real e previamente queremos ancorar como reta final dessa empreitada. 

     Como foi dito antes esse período da Reforma Protestante é riquíssimo para a construção de um passado histórico com o qual venhamos como igreja evangélica e brasileira a nos identificar. Ao que tudo indica se chegarmos à primeira parada já me darei por satisfeito. Haja vista o imenso mar de nuances de que o assunto por si só se encontra cercado. Entretanto, se temos que começar a navegar em busca desse passado que reputamos como herança. Que seja por meio daqueles valores que se constituem e se reproduzem no dia a dia de nossas práticas, principalmente as litúrgicas. Desde que as mesmas nos remontem enquanto reconstrução de memória ao cenário europeu sem que tenhamos que passar nesse itinerário de volta pelo tempo, ao protestantismo norte americano e fundamentalista.

     Agora pouco, foi feita a leitura de um texto que nos serve de base para esta reflexão. Este ato é aquilo que se pode chamar de escolha aleatória(Me perdoem, mas a imagem que me salta ao olhos é daquela caixinha de promessas). E mesmo que eu ou você sejamos arremetidos a algumas passagens no texto sagrado a cerca da leitura e explanação da palavra(Neemias 8; Lucas 4:16-21). O tipo de afirmação que fiz chamando o ato de leitura e explanação da palavra de "escolha aleatória", num primeiro momento pode parecer esdrúxula. 

     Também pode causar algum tipo de mal estar em alguns de vocês. Por estar muito mais em harmonia com o princípio e hermenêutica reformadora do que com os dois textos bíblicos listados no parágrafo anterior. Ou seja, a hermenêutica reformadora não foi uma ferramenta forjada no século XVI. Ela não caiu de paraquedas neste período. Pode se dizer que ela alcançou o status de movimento histórico, porque também alguns outros acontecimentos de natureza histórica contribuíram para isso. 

     Personalidades das artes e ciências questionavam a visão monolítica que durante séculos dominou o mundo medieval. Paradoxalmente, este tipo de questionamento vindo de fora inexoravelmente influenciou a igreja em seu interior. Este tipo de influência pode ser considerada como caixa de ressonância àquela vitalidade adormecida e que ainda pulsava em seu interior na pessoa daqueles que foram historicamente considerados os pré reformadores da igreja.

     Sem sombra de dúvida herdamos alguns princípios reformadores a partir deste movimento do século XVI. Os principais pressupostos desse movimento reformador, de certa forma, foram sementes plantadas em séculos anteriores e que, agora, nas condições favoráveis de solo e clima puderam germinar. Algumas personalidades que surgem nesses períodos anteriores a Reforma, tinham sido objeto de muitas perseguições por defenderem algum tipo reforma no interior da igreja. Na história, essas personalidades ficaram conhecidas posteriormente como pré reformadores. É evidente que essa lista de pré reformadores é extensa, porém, ao me referir a eles tenham sempre em mente a figura de John Wycliffe(1325-1384) e John Huss(1372-1415).

  Os pré reformadores já questionavam a validade do dogma em assuntos como transubstanciação, purgatório, celibato, indulgências, o poder monárquico papal, e defendiam a escritura como única autoridade na igreja. Todos os pré reformadores que surgiram na igreja, que fazem parte de uma extensa lista, que embora não tenha feito menção dela com especificidade e em sua íntegra, eram homens que estavam dentro da igreja, portanto, faziam parte do clero. Assim como os dois pré reformadores citados de forma específica, Wycliffe e Huss. 

     O que esses dois pré reformadores fizeram ao questionarem alguns desses dogmas tem se perpetuado no seio do catolicismo até nossos dias. Um grande exemplo disto é o teólogo suíço Hans Kühn. Um crítico ferrenho da estrutura hierárquica católica e dos seus representantes: A cúria romana e o sumo pontífice. No caso de Kühn, ele aponta uma reforma que alcance a desconstrução desse modelo hierárquico de igreja forjado por Gregório Magno, no século VII.

     A questão do dogma sempre foi crucial para o desenvolvimento da igreja. Hoje, não tenho qualquer tipo de problema em afirmar que precisamos sempre de uma definição dogmática quando nos pronunciamos a cerca de artigos de fé. Porém, precisamos entender que o cristianismo não se resume ao dogma(SEEBERG, Reinold. Manual de doctrina cristiana. 31 p.). Entretanto, as fórmulas fixas da religião cristã recebidas pelos povos germânicos foram chamadas de dogmas. E era a única maneira destes povos se relacionarem com a antiguidade que eles não tinham. As quais foram mediatizadas pela igreja via teologia.

     Tive que abrir um parêntese nessa abordagem de viagem em caráter retrospectivo e histórico para fazer algumas considerações sobre o dogma. Mas uma coisa deve ficar clara para todos nós, é que a nossa primeira ancoragem nesta viagem que estamos fazendo acontece basicamente no ponto de declínio do período medieval. Esse período é também conhecido como baixa idade média ou idade média tardia. E a atribuição de ponto de declínio, a meu ver não pode transparecer algum tipo de perda de qualidade quanto a excelência da devoção cristã tal como os tradicionalistas católicos assim definem. Esse ponto deve ser visto como o desmoronamento de uma visão única e absoluta de mundo.

     Isto já se refletia nas ciências, na filosofia e nas artes. Por exemplo,  na música encontramos alguns representantes como Giovanni da Paletrina que se valia da polifonia na composição de suas missas cantadas. Outro exemplo que também pode ser dado, e este está diretamente ligado à minha formação em literatura. É a figura imponente de um homem chamado Dante Alighieri. Ele é do século XIII e já neste período ele escreve uma monumental obra conhecida como "A Divina Comédia." Detalhe, Dante escreve esta maravilha de obra em Italiano e não em Latim como era de costume. Com esse gesto ele foi fundamental para o desenvolvimento desta língua neo latina e para toda a Itália. A língua é tanto fator de integração nacional quanto elemento que contribui para a formação de uma nacionalidade.

     A esses ventos advindo das artes, ciências e também da filosofia, foi dado o nome de Renascimento. Eles marcam o fim de uma era chamada feudal(O que é e o que representou o feudalismo, você saberia responder?) e início de um período da história conhecido como era moderna. Logo, foi o feudalismo que caracterizou a idade média. E o Renascimento apontou o declínio desse sistema social que subsistiu desde o fim do império romano. Ou seja, para que efetivamente esse movimento de Reforma tomasse o vulto e a projeção histórica que tomou, questões tanto de dentro quanto de fora da igreja contribuíram para isso.

     Essa visão histórica como pano de fundo ensejada por uma pretensa viagem por este passado, só terá valido a pena se realmente nos apropriarmos desses princípios reformadores. Não quero aqui fazer apologias daqueles cinco pontos da Reforma, pois entendo que são resultados de desenvolvimentos posteriores e já se constituem como processo final na racionalização e sistematização do que foram os pressupostos do início deste movimento reformador. Acho que este assunto teria um aproveitamento melhor caso resolvêssemos estudar com especificidade o calvinismo.

     Mas, voltando novamente o foco para esta questão a cerca do principais pressupostos de formação e maturação dos princípios reformadores e o consequente rompimento com as bases do catolicismo romano e medieval, não se deve omitir o fato de que a geração de luteranos que sucede a geração de Lutero no interior da igreja incipiente e luterana. Empreendeu uma volta, pelo menos em tese ao método de se fazer teologia na idade média. Tanto que este período do luteranismo ficou conhecido como escolasticismo protestante(TILLICH, Teologia Sistemática. São Paulo, Ed. Paulinas. São Leopoldo Sinodal, 79 p.)

     Todavia, o meu foco nesta abordagem é tentar clarificar de uma forma generalizada  aqueles elementos embrionários que contribuíram decisivamente para que o movimento reformador do século XVI alcançasse o status de movimento histórico. Muito embora sua forma embrionária tenha florescido no interior da igreja com toda a característica de uma experiência mística e pessoal que foi essa fase embrionária. Foram seus desdobramentos e o terreno preparado desde fora dos muros dos mosteiros e abadias que contribuíram para que essa experiência mística de um monge agostiniano tomasse a forma de movimento histórico. Basicamente, o que fizemos até agora foi organizar uma narrativa a cerca de um evento ocorrido internamente no catolicismo do ocidente. Que tanto do ponto de vista da história secular quanto da visão do magistério da igreja foi considerado um cisma patrocinado por hereges.

     Outro dado que não pode ser esquecido jamais. Não se deve negar que houve um movimento de insurreição no seio do catolicismo. Mas, este movimento de insurreição batia contra uma espécie de poder monárquico, imperial e ditatorial que respaldado por um poder que emana do céu representado por um pontífice(Aquele que estabelece as pontes), e se interpõe na condição de mediador entre Deus e o homem inibindo assim a ação do Espírito divino como um dom dado aos homens e não a um homem em especial.

     Acho que a principal conquista, muito embora seja o elemento que vem causando os maiores transtornos para a igreja contemporânea e evangélica, a partir desse movimento reformado, foi a possibilidade dessa igreja a todo momento buscar uma identificação com as igrejas do Novo Testamento. Isto fez com que a busca pelo conhecimento das escrituras se tornasse imprescindível para todos invariavelmente. Vale lembrar que a crítica do movimento reformador não era necessariamente uma lutar para se estudar mais as escrituras sagradas. As escrituras sempre foram muito estudadas e pesquisadas, Lutero é uma prova disso. Por outro lado, esses estudos eram tomados de forma erudita e sem que o mesmo fosse democratizado.

     Qualquer tipo de desmando de um pastor, a despeito de nessa busca pela escritura se objetivar algo que respalde suas atitudes a cerca do governo da igreja, agora, e por meio dessa mesma escritura, pode ser refutado. Foi o desmonte desse quadro de poder monárquico na igreja que possibilitou ao povo o acesso a escritura e uma consequente liberdade das amarras de uma camisa de força que prevalecia por instrumentalidade de um método exegético e alegórico. Desde Gregório Magno que os estudos das escrituras foram sempre levados a sério desde que os mesmos fossem orientados e conduzidos a dar sustentação e relevância aos princípios previamente estabelecidos nos quatro primeiros concílios universais da igreja.

     Jamais houve algum tipo de negligência do catolicismo com relação a leitura e estudo das escrituras sagradas. Pelo contrário o estudo da Bíblia sempre foi incentivado. Os pressupostos para este incentivo tinham sempre um viés "ORTODOXO". Entretanto, este ensino das escrituras apenas tinha relevância desde que apontasse para a doutrina eclesiástica. Falar em ortodoxia ou ortodoxo neste período da igreja de Gregório Magno é estar afinado e fundamentado nos quatro primeiros concílios universais. Esse é um dos motivos pelos quais até hoje as igrejas do oriente trazem consigo a atribuição de ORTODOXA. E tal como acontecia no passado antes da cisão entre catolicismo oriental e ocidental. A base e princípio regulador de suas liturgias e doutrinas estão atreladas aos quatro primeiros concílios universais da igreja.

     Não se pode esquecer que Martinho Lutero era um professor e profundo conhecedor das sagradas escrituras. Por outro lado, sua formação enquanto monge, era agostiniana. Lutero era um homem que vivia angustiado mesmo estando literalmente dentro da igreja, ele fazia parte do clero. Este princípio está regulado pela FIDES IMPLICITA, o fiel crê naquilo que a igreja crê. Mesmo assim, tendo consciência das definições de credo da Santa igreja católica apostólica e romana, ele vivia cheio de inquietações.

    Foram justamente essas inquietações a cerca de sua salvação que cada vez mais o levavam buscar conforto e refúgio nas escrituras. Uma epístola que foi fundamental em sua transformação foi a epístola aos Romanos e a justificação dos pecados tão somente pela fé de que Paulo fala. O seu apego às escrituras em seus momentos de crise existencial, a influência da filosofia e pensamento agostiniano de uma incansável busca pela verdade, aliada a suas experiências pessoais de religiosidade mística forjaram a vida e pensamento deste homem que através de sua consciência se insurgiu contra o sistema hierárquico e ditatorial católico.   

     Os desdobramentos desse movimento reformador iniciado por Lutero não apenas provocaram o grande cisma da igreja no ocidente. Ele também foi inspirador de mudanças geo políticas na Europa  contribuindo diretamente para a formação e fortalecimento dos estados nacionais. Aflorou o sentimento nacionalista dos alemães. Alguns historiadores espanhóis dentre eles se destaca a figura de Maria Elvira Roca Barea, atribuem a Reforma Protestante o golpe político para uma unificação da Europa, inclusive o projeto de moeda única que já se construía neste período.

     Pra encerrar é bom que tenhamos em mente que a Reforma Protestante teve acertos e desacertos. Para a igreja e para aquele crente que vive em seu interior ela representou a recuperação daquele princípio que está no Novo Testamento de que igreja é uma comunidade de fé. E de que nela todos devem zelar por uma convivência pacífica e harmoniosa. Nada melhor para ilustrar esta fala do que a epístola de Paulo a Filemon. Nela, o apóstolo tenta aparar e dirimir as dúvidas quanto ao que esperar de uma relação senhor-escravo no contexto de uma relação fraterna entre irmãos em Cristo.

     A Reforma também recuperou o conceito de responsabilidade individual e subverteu a lógica vigente no catolicismo de que para crermos em Cristo, isto o fazemos via igreja e sua estrutura monárquica e institucional. Pelo contrário, é a partir de uma relação ou encontro pessoal com Cristo que aderimos a uma comunidade de fé(Igreja). A partir de então e somente neste contexto subscrevemos os princípios dogmáticos e doutrinários dessa comunidade de fé.

     Ela democratizou o acesso do povo de Deus às escrituras sagradas sob o argumento de que tanto a autoridade quanto a revelação divina estavam na Bíblia e que efetivamente não procedia o foco doutrinal católico de que para se ter acesso a revelação e ao Deus da revelação era necessário a mediação via magistério da igreja. Daí o uso e ênfase de termos que na acepeção da palavra são paradigmáticos para ambos os lados: Na proclamação_ KERYGMA, em detrimento do DIDAKHÊ_ ensino, magistério.

     O que a Reforma e o tipo de experiência advinda de uma relação com o dogma trouxeram, pode ser considerado como uma experiência trágica. Tenho usado muito neste texto essa terminologia(Dogma), mas tenho absoluta consciência do quanto ela é problemática e provoca em alguns setores do protestantismo uma espécie de mal estar. Independente de seu uso e dos conceitos que a este termos estão atrelados. Sabemos que ele tem uma imensa carga de sentimentos negativos, chegando até mesmo resultar em ódio histórico.

     Porém, o que é bastante por este momento exemplificarmos e essa tem sido minha principal preocupação é o fato de que as palavras enquanto signo linguístico não são de propriedade de quem quer seja. Elas fazem parte do léxico das muitas línguas que existem pelo mundo e dela fazem uso os seus falantes. A língua enquanto tratado de convenção de um povo é o principal e mais democrático instrumento de comunicação dos homens.

     E não resta dúvida de que Lutero e os reformadores que o sucederam se valeram deste instrumento como elemento de comunicação e transmissão da verdade. Além disso a imprensa como uma tecnologia de comunicação inventada pelo homem(Gutemberg) favoreceu na divulgação, propaganda e esclarecimento dos seus questionamentos fazendo com que as autoridades eclesiásticas de seu tempo ficassem de mãos atadas a cerca de uma eventual repressão por mais violenta que pudesse ser. 

     Por último, o que precisamos entender. E a Reforma contribuiu muito para isso, é o fato de que doutrina nenhuma, nem a do lado protestante, é revelada(TILLICH, Paul. Op cit 110 p.). Porém, há eventos revelatórios e situações que podem ser descritas via terminologia doutrinária. As doutrinas eclesiásticas quando separadas da situação revelatória da qual surgiram, carecem de sentido e acabam se tronando impositivas e heterônomas.



_______________________________________________________

Bibliografia 



TILLICH, Paul. Teologia Sistemática.Trad.Getúlio Bertelli S. Paulo-S. Leopoldo
      Ed. Paulinas-Sinodal. 725 p.

SEEBERG, Reinhold. Manual de Historia de las Doctrinas. Trad. J. M. Bonino.
       El Paso, Texas. Casa Bautista de Publicaciones. Tomo II. 471 p.
     

     

     

     
 

    

    

    

      

     

    

     

     

    












Fiquem com a fé!!!

  Texto - Hebreus 12:1-16 Tema - Fiquem com a fé!!! ICT - Assim como essa grande nuvem de testemunhas do passado. É nosso dever e obrigação ...